quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

Querido P

Este era o e-mail que eu te queria enviar na véspera do teu casamento, mas provavelmente só te vou dar os parabéns e desejar felicidade eterna. E no fundo é o que eu quero para ti.

P,

Já não me lembrava de ti, sóbria, há algum tempo. Hoje de um momento para o outro fui ao calendário confirmar que te ias mesmo casar daqui a praticamente uma quinzena de dias. Felizmente estava no jornal e a lembrança só me deu para isso, para lembrar mesmo. Depois ocupei o tempo com trabalho, e os sons das memórias com música alta.

Vais-te casar com uma mulher que eu não conheço e a quem não imagino a cara. Vais-te casar que foi o que sempre quiseste, e no que depender de ti serás feliz. Tenho a certeza. Porque tu és assim, desfazes-te em esforços para que toda a gente que tu gostas esteja bem, esteja feliz. E agora consigo ver isso com clareza, agora acho isso bonito e já não me assusta. Não vou dizer que queria daqui a quinze dias estar a casar-me contigo porque isso seria mentir-te outra vez. Mas queria, pelo menos que há quatro anos não te tivesse largado sem justificações. 

Digo muitas vezes, para me convencer mais a mim que aos outros, que nunca encontrei ninguém por quem valesse a pena ignorar os seus defeitos. Mas é outra mentira. Conheci e eras tu, e para ser sincera - porque basta de mentiras na nossa história - não me consigo lembrar de nenhum defeito que tivesses que não fosse apenas o dos comuns dos mortais. 

Tiveste a coragem de me convidar para jantar mesmo quando estava a agir como uma miúda convencida. Aturaste-me birras, e caprichos que nenhum aturou. E mesmo na noite em que te disse que estávamos a crescer para lados opostos - outra mentira - ainda me trataste bem. Foste o único que pude apresentar aos meus amigos e irmãos, que poderia levar a almoçar a casa das minhas tias avos e avos, que tenho a certeza saberia como lidar com os meus pais. E ainda assim recusei-me sempre a fazê-lo. 

Vais-te casar e desejo que sejas feliz. Desejava acima de tudo que o fosses ao meu lado. Mas não sendo espero que essa tal Sul Americana te dê tudo o que eu não dei e queria dar agora. Desejar que sejas feliz é o mínimo que posso retribuir.

Tudo isto, sinceramente.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

Coisas que o congresso do jornalistas ignorou e que realmente interessam

O dia-a-dia de uma redação não é só marcado pela falta de tempo, pela precariedade ou pelo avanço galopante das novas tecnologias. No mesmo dia tudo isto aconteceu, e não é exclusivo do dia de hoje:

- suposições acerca da vida sexual desta que vos escreve enquanto se fazia pausa para um cigarro 
- Correr todos os colegas trashy talk durante o almoço 
- tentar para os boatos da gravidez inexistente desta que vos escreve
- ter um ataque de tosse que quase fazia esta que vos escreve vomitar no meio da redação, e ver voltar todos boatos acerca da suposta gravidez
- etc, etc

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Preferências

Ele:O que queres almoçar?
Ela: Tanto faz. O que tu quiseres.
Ele:Italiano?
Ela:Não me apetece

Ele:Queres ver alguma coisa?
Ela:Pode ser.
Ele:O quê?
Ela:O que te apetecer, vejo qualquer coisa.
Ele:Aquele documentário?
Ela:Isso não.

Já foi tudo escrito sobre este tema. Eu sei. Mas estas são duas situações reais, que aconteceram nos últimos dias. A "ela" sou eu, o "ele" não é o mesmo nas duas histórias, um é o meu irmão, o outro um amigo. O quero dizer com isto? Nada propriamente, apenas acalmar os senhores que acham que este tipo de diálogos são exclusivos em relações e sinónimos uma atitude quase bélica. Não é nada disso, não tentem procurar uma agenda oculta que nem um maluquinho a ler Dan Brown. É tão simples quanto isto: A mulher, neste caso eu, não tem mesmo preferências quando a pergunta é feita. Mas, sabe-se lá porque, os homens têm a pontaria de sugerir as coisas que menos nos apetecem numa lista de infinitas possibilidades. 

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Quem conta um conto #2

Entrou no quarto para o acordar, fazia-o todos os dias nos últimos anos. Os afazeres profissionais faziam com que não conseguisse estar com o pai o dia inteiro. Mas desde há três anos que fazia questão de lhe dar o pequeno almoço com o primeiro beijo do dia, esforçando-se por conter a ideia de que aquele podia ser o último. Era aquela altura da vida em que há uma volta. Parecia que tinha sido ontem o dia em que o pai o acordava para o levar à escola, sempre com um beijo mesmo nos dias em que miguel não ouvia o despertador e o pai tinha que o apressar. O beijo nunca faltava.
À semelhança do que acontecia desde que o cancro no pâncreas tinha aparecido e o pai ido para casa de Miguel, entrou deu um beijo na bochecha do pai e foi abrir a janela. Os lábios sentiam cada vez mais os ossos, mas naquele dia tiveram dificuldade em sentir calor. Abriu a janela, voltou à cama. Agarrou no pulso do pai, não sentiu nada. Depositou o ouvido perto do coração, e achou que era o barulho da máquina de oxigénio que não lhe permitia ouvir o respirar do coração. Abanou o pai, chamou-o. Tentou convencer-se de que aquele não era o fim. A seguir convencia-se que tinha sido bom. Que o pai sofria e que tinha partido durante a noite, sem dar conta. Que estava agora ao pé da mamã e dos avós. Para depois voltar a chamar o nome do pai. Não podia ser aquele o fim. Como podia ser aquele o último dia da vida do pai e o sol ter nascido como se não houvesse nada de diferente? Ajoelhou-se ao pé da cama, chorou. Ficou ali até aos joelhos sucumbirem, e sentou-se com a cabeça no meio das pernas. Já não tinha lágrimas, não tinha nada. Havia dentro dele um vazio que parecia ser impossível de preencher. Toda a vida, por influência do pai, tinha sido organizado. A pessoa na linha da frente para resolver todos os problemas. Consegui afastar o drama e ser racional quando mais ninguém conhecia. Naquele momento tinha perdido a força nas pernas e um peso tinha-se instalado sobre o peito. Não sabia o que havia de fazer. Não conseguia pensar. Queria que aquele dia não tivesse amanhecido. A mulher que o esperava no carro, depois de deixar os filhos na escola, achou estranha a demora. A enfermeira que preparava os medicamentos da manhã esperava ser chamada. O tempo tinha parado para Miguel. E só quando a mulher entrou no quarto o ponteiro do relógio voltou a andar. "Não te preocupes, eu trato de tudo." Miguel conseguiu finalmente levantar-se. 

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Aproveita as manhãs para ligar à família

Aproveita as manhãs para ligar à família. Nestas semanas que são dedicadas ao natal, há sempre tempo para tudo quando o tempo começa a faltar. E se falta… E pela primeira vez, há um bater de bola, um corridinho que não deixa saudade, nem vontade de mais. Contudo, depois há a tormenta das insónias, da azia. As duas fazem arder por dentro. Começa a fazer-se contas à vida e ao número de extintores que temos por perto. São sempre os mesmos a apagar os fogos, e é com eles que se pode contar. Faz-se muita coisa que não se deve, e maioria de vezes a solução é uma só: desligar o cérebro. A inquietação não o permite. Depois passa-se por um processo de irritabilidade. E a palavra oral tem sempre mais valor. Há combinações e compromissos e não se pode falhar. Tanto com os que vão sendo feitos com o nosso grilo falante, como com aqueles que vivem nas nossas vidas. Mais, aqueles para quem vivemos. E a somar a tudo isto, há a idade. Diria mais, a pdi. Esse monstro que vai tornando cada vez mais pequenas as horas de sono, que nos faz sentir o jantar até mais tarde. E que torna todos os dias os dias chá, por oposição ao dia da cerveja. É ela também que faz com que todas as horas deixem de ser a hora do chá. As listas intermináveis passam a ter fim e acabam nas infusões. Não nos arriscamos a passar das infusões, sob pena de a loucura de escolher um chá verde depois das onze da noite nos faça passar a noite acordados. 

O futuro vai-se tornando presente, e o passado condescendente. 

domingo, 2 de outubro de 2016

Notificada

Estava estoirada, cansada, farta de uma semana infinita onde o tempo faltava para a quantidade de tarefas. No total umas 15 horas de sono, sexta-feira, ainda em pé, na redação olhava para os minutos durante uma interminável reunião. Os momentos mágicos da vida quiseram que enquanto via as horas visse o teu nome numa das notificações. A vontade de sair tinha agora outra alegria, os ponteiros do relógio corriam atrás de um outro objetivo.

Tens o condão de me deixar assim, sem o saberes, sem fazeres por isso. Não sei se alguma vez será possível viver o cenário com que sonho aos sábados e que imagino acordada. Mas enquanto me fores enchendo o telefone de notificações por mim está bem assim.

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Quem conta um conto

Nasceu magrinho, ligado aos tubos até ter força suficiente para poder respirar o ar que os que por cá já andavam encheram de micróbios e poluição. Depois disto contra todas as expectativas dos medicos não voltou a dormir mais num hospital. Foi a primeira finta da sua vida. A seguir, começou a driblar os adversários com mais arte. 

Cresceu e nem sequer ia sentindo o nariz a pingar nos invernos mais rigorosos. Diz ser de ter evitado todas as recomendações preocupadas da mãe que fazia de tudo para lhe amparar as quedas, e de ouvir os sermões que o pai lhe dava quando caía: "Leva o casaco, Zé Pedro."; "Lava as mãos, Zé Pedro."; "Não metas isso à boca, Zé Pedro."; "Devias ter prestado mais atenção Zé Pedro."; "Já te tinha avisado, Zé Pedro."

Os anos foram passando por Zé Pedro, e a voz preocupada da mãe ecoando nos gestos do dia a dia. Zé Pedro cresceu e os conselhos do pai tornaram-se a cartilha para a sua vida.

O miudo reguila e bom aluno que enganava todos com o olhar matreiro e o sorriso terno, tornou-se pai. E agora respira amor para ali, para aquela encubadora que tem a sua filha. Só tira os olhos da encubadora para acalmar a mulher. Está ali, como a virtude, no meio das duas a aprender a ser pai. Sorte a do Zé Pedro que teve os melhores dois exemplos do mundo.

À noite quando ninguém ouve, o ateu convicto reza as orações que se lembra de ouvir na voz calma da avó. Pede que a Maria cresça e saia dali, pede que um dia também ela ignore as preocupações da mãe e que passe os invernos sem um espirro. 

Quando a mulher acorda e lhe pergunta com quem fala não lhe conta a verdade: "Estava a falar com a Maria, não te preocupes Teresa." Dizer a Teresa que fala com alguém a quem ele não reconhece existência era motivo para a preocupar mais. E por isso na outra tarde quando ela lhe pediu que fosse à capela pedir a São Francisco, Zé Pedro barafustou indignado. Aprendeu nos negócios que às vezes a aparência é a chave do sucesso. Zé Pedro foi, pediu a São Francisco e a todos os anjos e santos. Repetiu o que a mulher lhe tinha dito, o que se lembrava de ouvir à avó e ainda negociou com Nossa Senhora de Fátima como se numa reunião estivesse: "Nós demos-lhe o teu nome. Tão depressa lho tiramos. Pelo nome e a saúde dela vou à missa uma vez por mês. Pronto, todos os domingos. Doo dinheiro todos os meses à paróquia."

A seguir a pedir sente-se sempre culpado, como se aquilo fosse desistir. É que na fé de Zé Pedro ter fé na recuperação é não ter de recorrer à fé. Vê o médico ao longe, vem de papeis na mão encontrá-lo à porta da capela. Não pensa, corre na sua direção para ouvir as suas novidades. Aprendeu no ano em que formou a sua empresa que se alguém dá notícias cara-a-cara ou são muito boas ou são muito más. Zé Pedro não quer pensar no que os negócios lhe ensinaram. Teresa está sempre a avisá-lo que na vida nem tudo é negócio, e ele sabe que a devia ouvir mais vezes.