segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Ver se arranjo forças para voltar esta semana

É estranho. É estranho aprender a lidar com tudo de uma só vez. Nunca pensamos na perda e morte . Tomamos tudo como garantido , mas a vida rouba-nos as ilusões em pouco tempo. A agoniante espera nos corredores de um hospital, a cólera visível nos olhares indiscretos . A caminhada seca e abafada até à porta de um quarto, o mortificante silêncio do elevador. Era assim que se vivia a seguir ao almoço no Hospital de Santa Maria. O objecto de visita era a minha tia . . . Sempre considerada excêntrica e exagerada , estava agora deitada numa das muitas camas da ala da neurocirurgia. A cicatriz na nuca evidenciada pelo cabelo rapado mostrava a duvida dos médicos . . . Será cancro, será (na melhor das hipóteses) uma bactéria ? Ninguém sabe dizer, as enfermeiras entram avisam a hora do próximo exame e pedem aos familiares que abandonem o local . . . Com a voz tremula, numa lentidão notória , as palavras arrastam-se e as despedidas com desejos de melhoras são feitas. Na carteira castanha procuro os óculos de Sol, e vejo que é quase um gesto padronizado por todos os que dali saem. O pior está a chegar: "Qual é a saída?" "À direita, para Miraflores.". É tudo dito em poucas palavras, tento mentalizar-me, convencer-me da força que vai ser necessária . Entramos em casa da minha outra tia, já não posso segurar os óculos de sol. Sentada no sofá está em vulto. Vêem-se ossos por baixo de uma pele de cor amarelada. É o quarto dia de quimioterapia e o sofrimento é visível. Fala-se de tudo, tenta-se mudar os assuntos e até rir. Mas o ambiente está pesado. Não consigo desviar o olhar, não consigo falar. Estou colada a um sofá, estou colada a um presente ingrato. Não consegui falar com os meus primos. Não lhes consegui dar o abraço que precisam. Ver se arranjo forças para voltar esta semana. A viagem de regresso foi feita sempre com os óculos postos, com um lenço na mão direita que agarro até estar desfeito. Finjo que durmo, quero dormir a sério; acordar e pensar que tudo não passa de uma ilusão.

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