sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Filha da p*t# da doença

A minha irmã está a ser operada agora, nada de grave, uma pedra no rim que não sai desde o verão. Mas, embora gravidade seja quase nula, sempre que ela entra num hospital, sempre que vai a um médico volta a sombra, volta a memória daquele dia, daquelas semanas e meses.

Lembro-me várias vezes, era quinta-feira, ligaram-lhe uma reunião, um caso urgente obrigava-a a ir para Viseu o mais cedo possível no dia a seguir. Tínhamos planos para o fim-de-semana que ficaram imediatamente defraudados, furiosa fez a mala. 

Fiquei, como em tantos outros fins-de-semana sozinha em casa, acho que dei um jantar na sexta, que o R dormiu comigo no sábado. Passou à velocidade de todos os fins-de-semana, quando abri os olhos já era domingo à noite e ela já estava de volta. 

Estava a fazer o jantar para as duas, pus um testo na panela e fomos para a sala. Com o que eu achei que era um sorriso, hoje sei que eram os músculos presos, uma cara que adotou durante algum tempo, diz-me: afinal não era nada uma reunião que eu tinha em Viseu.

Lembro-me que ri, à espera que afinal fosse uma coisa boa que lhe punha aquele "sorriso" no rosto. Não era. Não era bom. Não era um sorriso. Lembra-me do sinal que tinha ido tirar há uns tempos, apenas por ser feio. Eu lembrei-me.

Percebi imediatamente os músculos que ela tinha presos na cara. Os meus ficaram iguais. Era cancro, não havia dúvidas disso. Mas havia tantas outras, tantas perguntas, tantas inquietações. Ouvi-a, perguntei o mínimo. Ela respondeu o mínimo. Lembro-me de a ver pronunciar as sílabas do nome do cabrão como se as regorgitasse. Dizia-as com desprezo mas ao mesmo tempo com respeito. Uma idiossincrasia que os aquela puta daquela doença permite.

Decorei-as com nojo, como se mas tivessem tivem cravado na memória com um cinzel. A seguir jantei, só para manter a normalidade do que era anormal e abjeto. Deitamo-nos. Sozinha, no meu quarto, lembrei-me das sílabas. Escrevia-as no Google. Ainda não tinha chorado. Mas as imagens surgiram sem pudor, pernas estropiadas, marcas do tamanho de crateras, as letras repetiam-se criando cenários de horror. 

Era raro, mas se apanhado no início, e com mais uma série de tretas que fiz questão de esquecer, facilmente removível. Não dormi mais. A noite inteira acordada, com pensamentos idiotas que hoje me arrependo de ter tido. Previsões do imprevisível e um nó no estômago que teimava em não passar. Cigarros fumados com uma sensação de culpa, mas era a única coisa que me acalmava a mente. 

Vi o sol a nascer, os tons avermelhados incendiavam o céu, não chovia. Levantei-me arrastei-me até a casa de banho, ouvi a minha irmã a acordar. Fui cobarde, fechei-me no quarto para não ter que a fitar. Arrependi-me imediatamente e voltaram os pensamentos absurdos. Deitei-me na cama, a faculdade ficava para outro dia, naquela segunda-feira não iria sair de casa. 

Ligou-me o meu pai para saber como estava a minha irmã, para saber como eu estava. Na altura não lhe perguntei como ele estava. Só o ano passado mo disse quando estávamos um dia a caminho do hospital, já pela pedra no rim, e ele desabafa "é sempre à tua irmã". Contou-me como tinha sabido, como tinha ficado desesperado, sem poder dizer nada, sem querer dizer à minha mãe até ela poder estar com a minha irmã. 

Falamos o ano passado, há dois anos e falaremos agora. Falamos agora que o pesadelo acabou. Mas falamos sempre com medo de adormecer e que tudo volte. A doença é uma filha da puta, uma cabra faltam-me todos os insultos para chamar aquela que já me levou tanta gente. Nesta luta, fomos nós queganhámos, e a cada consulta de rotina a médica diz que é mais um passo, mais uma vitória. 

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