terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Preferências

Ele:O que queres almoçar?
Ela: Tanto faz. O que tu quiseres.
Ele:Italiano?
Ela:Não me apetece

Ele:Queres ver alguma coisa?
Ela:Pode ser.
Ele:O quê?
Ela:O que te apetecer, vejo qualquer coisa.
Ele:Aquele documentário?
Ela:Isso não.

Já foi tudo escrito sobre este tema. Eu sei. Mas estas são duas situações reais, que aconteceram nos últimos dias. A "ela" sou eu, o "ele" não é o mesmo nas duas histórias, um é o meu irmão, o outro um amigo. O quero dizer com isto? Nada propriamente, apenas acalmar os senhores que acham que este tipo de diálogos são exclusivos em relações e sinónimos uma atitude quase bélica. Não é nada disso, não tentem procurar uma agenda oculta que nem um maluquinho a ler Dan Brown. É tão simples quanto isto: A mulher, neste caso eu, não tem mesmo preferências quando a pergunta é feita. Mas, sabe-se lá porque, os homens têm a pontaria de sugerir as coisas que menos nos apetecem numa lista de infinitas possibilidades. 

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Quem conta um conto #2

Entrou no quarto para o acordar, fazia-o todos os dias nos últimos anos. Os afazeres profissionais faziam com que não conseguisse estar com o pai o dia inteiro. Mas desde há três anos que fazia questão de lhe dar o pequeno almoço com o primeiro beijo do dia, esforçando-se por conter a ideia de que aquele podia ser o último. Era aquela altura da vida em que há uma volta. Parecia que tinha sido ontem o dia em que o pai o acordava para o levar à escola, sempre com um beijo mesmo nos dias em que miguel não ouvia o despertador e o pai tinha que o apressar. O beijo nunca faltava.
À semelhança do que acontecia desde que o cancro no pâncreas tinha aparecido e o pai ido para casa de Miguel, entrou deu um beijo na bochecha do pai e foi abrir a janela. Os lábios sentiam cada vez mais os ossos, mas naquele dia tiveram dificuldade em sentir calor. Abriu a janela, voltou à cama. Agarrou no pulso do pai, não sentiu nada. Depositou o ouvido perto do coração, e achou que era o barulho da máquina de oxigénio que não lhe permitia ouvir o respirar do coração. Abanou o pai, chamou-o. Tentou convencer-se de que aquele não era o fim. A seguir convencia-se que tinha sido bom. Que o pai sofria e que tinha partido durante a noite, sem dar conta. Que estava agora ao pé da mamã e dos avós. Para depois voltar a chamar o nome do pai. Não podia ser aquele o fim. Como podia ser aquele o último dia da vida do pai e o sol ter nascido como se não houvesse nada de diferente? Ajoelhou-se ao pé da cama, chorou. Ficou ali até aos joelhos sucumbirem, e sentou-se com a cabeça no meio das pernas. Já não tinha lágrimas, não tinha nada. Havia dentro dele um vazio que parecia ser impossível de preencher. Toda a vida, por influência do pai, tinha sido organizado. A pessoa na linha da frente para resolver todos os problemas. Consegui afastar o drama e ser racional quando mais ninguém conhecia. Naquele momento tinha perdido a força nas pernas e um peso tinha-se instalado sobre o peito. Não sabia o que havia de fazer. Não conseguia pensar. Queria que aquele dia não tivesse amanhecido. A mulher que o esperava no carro, depois de deixar os filhos na escola, achou estranha a demora. A enfermeira que preparava os medicamentos da manhã esperava ser chamada. O tempo tinha parado para Miguel. E só quando a mulher entrou no quarto o ponteiro do relógio voltou a andar. "Não te preocupes, eu trato de tudo." Miguel conseguiu finalmente levantar-se. 

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Aproveita as manhãs para ligar à família

Aproveita as manhãs para ligar à família. Nestas semanas que são dedicadas ao natal, há sempre tempo para tudo quando o tempo começa a faltar. E se falta… E pela primeira vez, há um bater de bola, um corridinho que não deixa saudade, nem vontade de mais. Contudo, depois há a tormenta das insónias, da azia. As duas fazem arder por dentro. Começa a fazer-se contas à vida e ao número de extintores que temos por perto. São sempre os mesmos a apagar os fogos, e é com eles que se pode contar. Faz-se muita coisa que não se deve, e maioria de vezes a solução é uma só: desligar o cérebro. A inquietação não o permite. Depois passa-se por um processo de irritabilidade. E a palavra oral tem sempre mais valor. Há combinações e compromissos e não se pode falhar. Tanto com os que vão sendo feitos com o nosso grilo falante, como com aqueles que vivem nas nossas vidas. Mais, aqueles para quem vivemos. E a somar a tudo isto, há a idade. Diria mais, a pdi. Esse monstro que vai tornando cada vez mais pequenas as horas de sono, que nos faz sentir o jantar até mais tarde. E que torna todos os dias os dias chá, por oposição ao dia da cerveja. É ela também que faz com que todas as horas deixem de ser a hora do chá. As listas intermináveis passam a ter fim e acabam nas infusões. Não nos arriscamos a passar das infusões, sob pena de a loucura de escolher um chá verde depois das onze da noite nos faça passar a noite acordados. 

O futuro vai-se tornando presente, e o passado condescendente.